Mecanização promove adeus dos “últimos boias-frias” aos canaviais

Tecnologia resolveu problemas sociais, ambientais e econômicos no setor mais tradicional do agronegócio brasileiro

Atualmente, apenas 3,36% dos canaviais têm colheita manual, justamente em áreas não mecanizáveis e/ou pequenas produções, destinadas a alambiques, cana forrageira e cana planta.

Atualmente, apenas 3,36% dos canaviais têm colheita manual, justamente em áreas não mecanizáveis e/ou pequenas produções, destinadas a alambiques, cana forrageira e cana planta.

28deSetembrode2023ás18:31

Vladival Delgado, de 61 anos, passa atualmente boa parte do tempo entre o aconchego da casa e a roça de seu sítio, na cidade de São Miguel Arcanjo (SP), após dedicar décadas de sua juventude à empreita em lavouras de cana-de-açúcar.

Certamente, ele poderia ser chamado de um dos “últimos boias-frias”, apelido do tipo de trabalhador rural que marcou a história da cultura e o imaginário coletivo sobre a dureza das atividades no campo.

A constatação é possível a partir da Série Histórica de Empreita na Cana-de-Açúcar do Instituto de Economia Agrícola (IEA), ligado à Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo.

Durante 51 anos, o órgão publicou anualmente estudos sobre esta atividade em canaviais que atestaram, finalmente, a mecanização de 96,64% da colheita do Estado no relatório relativo a 2022.

O percentual restante (3,36%) refere-se quase totalmente a áreas não mecanizáveis, com declividade do solo acima de 12% e/ou produções inferiores a 150 hectares, destinadas a alambiques e destilarias, cana forrageira e mudas de cana-de-açúcar.

“Na prática, a colheita de cana em escala já é totalmente mecanizada. Essa constatação é um marco da evolução do setor canavieiro, um dos mais relevantes nos aspectos econômicos, sociais e ambientais do país”, resume Carlos Fredo, pesquisador do IEA e um dos autores da série.

A taxa de mecanização evoluiu ano a ano nos canaviais paulistas, que responde por 54% da produção nacional.

Nos anos 1980, a utilização de máquinas para colheita, de acordo com o pesquisador Graziano da Silva, alcançava 5% da área. Já na década de 1990, o pesquisador Alceu Arruda Veiga Filho, também do IEA, estimou em 20%.

Na safra 2012/13, as colheitadeiras realizaram o corte de 81,3% dos 5,4 milhões de hectares de lavouras canavieiras. Até que enfim o percentual chegou à quase totalidade no estado de São Paulo em 2022.

Por isso, o instituto decidiu encerrar Série Histórica de Empreita na Cana-de-açúcar que manteve entre 1971 e o ano passado.

O “último” boia-fria

Seu Val, como é chamado, no entanto, relembra os tempos nos quais, acompanhado do pai e por vezes até mesmo da irmã, levantava às 3 horas da manhã e rumava diariamente à lida nos canaviais.

Era um trabalho muito duro, mas foi o que garantiu nosso sustento. No começo, era pior. Sem contrato nenhum, 3 horas de viagem no pau de arara e roça debaixo de sol e chuva. Depois, eles tiravam uma parte da cana para nós no fim da colheita”, relata.

Por isso, ele conta que, pouco a pouco, vários de seus colegas abandonaram a atividade tanto por outras oportunidades de trabalho, como por terem sido substituídos por máquinas. A falta de mão de obra também motivou proprietários a capacitar parte dos trabalhadores.

Vladival, por exemplo, aprendeu a operar tratores, bem como outras funções em propriedades rurais. “Uma fazendeira que tinha um alambique me ensinou a ser tratorista e disse que iria me tirar daquela vida. Eu gosto de aprender. Daí, comecei com outros trabalhos também, como transporte”, lembra.

Ainda assim, o trabalho duro deixou sequelas. Seu Val tem seis hérnias na coluna, que trazem sofrimento até hoje. 

“Hoje estou levando a vida e, graças a Deus e ao trabalho, consegui meu pedaço de terra. Tenho um alqueire e meio, coisa simples, mas pelo menos é meu. Planto uma rua de cana e faço garapa. Tenho também um pouco de milho, pepino caipira, abobrinha, quiabo e arroz. É uma terra muito fértil”, conta com orgulho.

Homem versus máquina

A capacidade produtiva das máquinas, naturalmente, foi um dos principais fatores para aceleração desta transformação profunda no setor.

Atualmente, uma colheitadeira de cana moderna pode processar até 180 toneladas da planta por hora. O trabalho humano, segundo o IEA, tem como parâmetro não mais do que 8 toneladas por dia.

Em outras palavras, tais maquinários avançados podem substituir o trabalho manual de, ao menos, 180 pessoas em um mesmo período. Até mesmo colheitadeiras menos avançadas realizam facilmente o labor manual de 80 a 100 indivíduos.

O fazendeiro Antonio Carlos Kempe, 62 anos, por exemplo, possui 26 hectares dedicados à cana-de-açúcar, no município de Iracemápolis (SP). Toda sua produção é comercializada com usinas de açúcar e etanol desta região.